Editorial

Dicta&Contradicta

All will be judged. Master of nuance and scruple,
Pray for me and all the writers, living or dead:
Because there are many whose works
Are in better taste than their lives. Because there is no end
To the vanity of our calling, make intercession
For the treason of all clerks
(W. H. Auden. At the grave of Henry James)

Ao enviar-nos a segunda versão revista do seu artigo, o prof. Mendo Castro Henriques escrevia-nos com a sua amabilidade e prosódia caracteristicamente lusas: “Parece que o bebé está a tomar corpo”. Temos hoje a alegria de deixar em suas mãos, leitor, esse “bebé” que é o resultado direto de vários meses de trabalho e o fruto indireto de alguns anos de amadurecimento, de gestação silenciosa: o primeiro número de Dicta&Contradicta.

Ao contrário do que talvez se possa imaginar ao ver o título, não temos a intenção de criar polêmicas, mas de incentivar no Brasil o hábito da discussão de idéias, algo que se pode fazer com toda a nobreza e boa educação. Porque formar opiniões, expô-las à critica, descartar algumas e aperfeiçoar outras, faz parte de qualquer trabalho intelectual honesto. O psiquiatra Konrad Lorenz dizia que mantém a mente em forma testar e rejeitar diariamente cinco hipóteses de estimação antes do café da manhã…

Acontece que, para formar as opiniões, antes de mais nada é preciso estudar a sério, ler bastante, refletir. Por isso mesmo não se encontrarão aqui notícias de última hora sobre lascas soltas do acontecido neste “vale de bobagens”, como diz Guimarães Rosa. Pelo contrário, Dicta compõe-se de ensaios relativamente longos sobre temas humanos de sempre – pensamento, comportamento, filosofia, literatura e arte, além da análise de situações e fatos que têm interesse a longo prazo. Não oferece soluções pré-fabricadas para problemas concretos, políticos ou (muito menos) partidários, sociais ou econômicos, morais ou de qualquer outra ordem. Não pretende ensinar ao leitor o que deve pensar, mas oferecer-lhe estímulo para pensar.

Costuma-se dizer, hoje em dia, que é preciso “servir ao público o que o público quer”: um prato preparado à la mode ideologique, muitas fotografias e um mínimo de texto com idéias condensadas in a nutshell, prontas para serem deglutidas sem esforço como quem engole um amendoim, e condimentadas com pitadas de sexo, violência e palavrões ritualisticamente aplicadas, porque, afinal de contas, agora somos todos “realistas”. Democraticamente, permitimo-nos duvidar deste ditame. Ou talvez seja melhor dizer que ousamos apostar em que continua a haver muitas pessoas que desejam, não a novidade pela novidade, mas uma inovação com o lastro da tradição; não a informação solta, mas o comentário que procura tirar dela o “suco da sabedoria”; não a teoria, mas a realidade em toda a sua riqueza e em todo o seu mistério. E suspeitamos que essas pessoas se sentem insatisfeitas com o alimento que hoje lhes é servido sob o pretexto de que “não é disso que vocês gostam”…

Mundialmente, há precedentes animadores. Baste mencionar, nos Estados Unidos, a The New Criterion – cujo modelo seguimos em certa medida -, que tem sido descrita como “mais consistentemente digna de ser lida que qualquer outra revista de língua inglesa” (Times Litterary Supplement) e permanece firme há uns bons 25 anos.

Em resumo, pensamos que as pessoas gostam do que é bom; e esperamos ter-lhes oferecido, com a honestidade intelectual e a seriedade de trabalho de que fomos capazes, textos tão bem ideados, argumentados, escritos e editados quanto o permitiram as nossas capacidades. Do resultado caberá ao leitor julgar. Se fracassarmos neste empreendimento – possibilidade que nunca se deve perder de vista -, poderemos então atribuir o erro unicamente a nós mesmos, e não ao público, à sociedade, ao governo ou ao “desconcerto do mundo” em geral.

***

Temos consciência de estar apresentando uma realidade nova no panorama editorial brasileiro, algo que rompe as classificações recebidas. Para já, o leitor pode considerar Dicta &Contradicta, indiferentemente, como uma revista de cultura ou como o primeiro volume de uma série aberta de coletâneas de ensaios. A periodicidade, por enquanto, será semestral, mas com a intenção de torná-la trimestral assim que seja possível.

Procuramos que fosse, antes de mais nada, uma leitura grata, acadêmica sem academicismo; ou seja, profunda e universal pela abrangência dos temas e cientificamente rigorosa no seu tratamento, mas sem a parafernália de notas de remissão e a linguagem técnica de alguns órgãos universitários (observação exemplificadora: sempre que não se indica tradutor para uma citação, é porque foi feita pelo autor do artigo). E depois, que tivesse uma “cara” atraente e sóbria ao mesmo tempo, com ilustrações de alto valor artístico. Neste sentido, queríamos agradecer especialmente ao artista Paulo von Poser, que se dispôs a ilustrar este número apenas por amizade desinteressada.

O primeiro dos três artigos principais deste número é uma edição das três últimas aulas dadas pelo poeta Bruno Tolentino. Quem o conheceu sabe como o consumia a preocupação com o esvaziamento cultural ocorrido no Brasil e com a necessidade de dar remédio a essa situação, pois compreendia que a superficialidade intelectual e a deformação da verdade não afetam em nós apenas um aspecto geralmente considerado “decorativo” ou uma “diversão” dispensável em última análise, mas fazem com que percamos de vista que a vida humana é “uma travessia do Enigma ao Mistério”. Dono de uma experiência de vida vasta e por vezes atribulada, Tolentino tocava todos os registros do humano, sem excluir os extremos do grotesco e do sublime, nesse seu empenho por despertar os interlocutores e conduzi-los à “epifania do real”. Tudo isso está presente neste primeiro artigo, e é propositado e simbólico ao mesmo tempo que a última palavra do poeta seja o ponto de partida de Dicta&Contradicta.

Uma brevíssima nota sobre esse texto: Tolentino não pôs por escrito essas aulas, que foram gravadas, transcritas e editadas. Optamos por publicar aqui um texto resumido, destinado a uma leitura clara e direta, e ao mesmo tempo permitir ao leitor acessar a íntegra da gravação original através do nosso site.

Mas continuemos com as “pièces de résistance“. O artigo do prof. Luiz Felipe Pondé, uma análise renovadora do livro do Eclesiastes, é ao mesmo tempo filosófico, exegético e vital, e sem que o tivéssemos previsto dialoga perfeitamente com as idéias do anterior. Já o do prof. Mendo Castro Henriques apresenta um dos pensamentos mais originais e profundos do século XX, o do filósofo Bernard Lonergan, ainda pouco conhecido do grande público. Aliás, uma das nossas metas era trazer em todos os números a contribuição de uma das grandes figuras intelectuais portuguesas da atualidade (e pretendemos fazer o mesmo com outros países, publicando regularmente, na seção do lado de lá, artigos traduzidos das revistas The New Criterion e First Things). Nesses artigos lusitanos, optamos por respeitar a ortografia e a sintaxe originais.

Dicta&Contradicta tem algumas novidades que esperamos sejam gratas ao leitor. A seção perfil, por exemplo, apresenta um breve ensaio não tanto sobre as idéias, mas sobre a personalidade e as preocupações centrais de um intelectual pouco estudado na cultura e na academia brasileira. Anatomia do poema, a cargo de Pedro Sette Câmara, analisará a cada número cinco obras clássicas e modernas, tanto do ponto de vista do conteúdo como dos elementos formais (métrica, ritmo, melopéia, etc.), ensinando a tirar fruto da leitura de poesia. Além das resenhas de livros recentes, nacionais, traduzidos ou estrangeiros, haverá sempre um ensaio de autoria variada sobre uma obra de importância inquestionável, mas esgotada ou ignorada até hoje pelo mercado editorial brasileiro. Por fim, como uma espécie de “extra”, de “presente” oferecido ao leitor quando este já não esperava mais nada, gênesis traz um breve ensaio inédito no Brasil, traduzido de um grande autor clássico; neste número, é o “primeiro discurso” de Samuel Johnson para o seu The Rambler, que reflete de maneira bem humorada e muito atilada sobre as apreensões e os dilemas dos autores novatos: nada mais apropriado para fazer eco à situação de quem se propõe lançar um empreendimento editorial inédito.

Sem querer chover no molhado, pois o leitor já pôde vê-lo no índice, Dicta trará também seções com artigos de filosofia, literatura, música, artes plásticas e cinema, sempre dentro das linhas já comentadas; um poema e um conto originais ou, eventualmente, em traduções inéditas para o português; e, para que terminemos a leitura sorrindo, uma página (dupla desta vez, pois não conseguimos resistir à tentação dos textos grandes…) de humor, a cargo de Ruy Goiaba. A partir do próximo número haverá também, é evidente, uma seção de cartas e comentários.

Mesmo com tudo isso, a nossa idéia é que Dicta&Contradicta seja apenas o cartão de visitas com que nos apresentamos ao leitor. Se lhe agradar o que leu, e pensa que pode contribuir, agradecemos que nos envie artigos e colaborações, ou mesmo sugestões e idéias, mesmo porque ainda pensamos introduzir outras novidades nela. Na verdade, porém, pretendemos que a Dicta acabe representando apenas uma pequena gota da enxurrada de cultura que desejamos fazer.

Já começamos a oferecer cursos e seminários para grupos pequenos, com a intenção de criar ao longo dos anos uma “massa crítica” de intelectuais que possam vir a ser formadores de opinião abalizados pela sua seriedade intelectual. E temos também a intenção sempre louvável de pôr em prática o que nós mesmos pregamos, ao menos no “lançamento que não houve”: a tradução e edição em língua portuguesa de grandes obras fundamentais para a compreensão do mundo moderno.

* * *

Duas palavras rápidas sobre quem somos. Juridicamente, “o Instituto de Formação e Educação é uma associação sem fins lucrativos que visa a estudar, criar e divulgar no Brasil conhecimento nos campos das Humanidades, das Artes e da Filosofia”. Na vida real, somos onze pessoas de diversos cursos e áreas profissionais – o leitor encontrará os nomes da maioria deles na página de expediente e entre os colaboradores – que se vêm reunindo há mais de três anos para estudar antropologia filosófica e metafísica, organizar palestras sobre os temas que agora freqüentam a Dicta&Contradicta, bem como ler e comentar as grandes obras do pensamento humano (e, como esse estudo é a sério, caminha lentamente: nestes três anos, ainda não esgotamos Platão. Sirva-nos de desculpa o que diz A. N. Whitehead, que “toda a filosofia ocidental não passa de notas de pé de página a Platão”).

Como o leitor, sentimos a carência de instituições que assumam a tarefa de educar nos valores básicos do ser humano e na grande cultura clássica e humanística. Esta é a lacuna que queremos suprir, não dando uma “buzinada” de um instante, mas de maneira permanente. Ora, para que um projeto desse tipo possa ir para frente, consideramos essencial – além da completa desvinculação ideológica e partidária -, a autonomia econômica. O que significa parceiros que contribuam com essa iniciativa por compreenderem a sua importância.

E aqui é o momento de agradecermos mais uma vez, desta vez aos nossos patrocinadores, o Banco Fator e o Instituto Bovespa, que confiaram em nós quando ainda não tínhamos nada de tangível a oferecer-lhes como prova de que não éramos meros sonhadores. Mais ainda, é preciso prestar-lhes uma homenagem especial pelo seu desinteresse: em nenhum momento procuraram influenciar, com uma só palavra que fosse, a linha editorial de Dicta&Contradicta. E com isso, leitor, está tudo dito. Até sair o próximo volume, daqui a seis meses, continuaremos o nosso trabalho no site www.dicta.com.br, que o convidamos a visitar.

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